sábado, julho 27, 2013

O Último batom vermelho de Florí



Mas o que ela realmente queria era os lábios vermelhos. Fez-me o pedido com um sussurro rouco. Borro, desenho e pincelo seus olhos e rosto, pinto seus lábios e, quando termino, seguro um espelho para que ela avalie o resultado. Ela fica em silêncio. Fecha os olhos. Sento ao seu lado na cama, segurando sua mão. Ficamos assim por um bom tempo. Vejo que o rosto de Florí está molhando e quente, o pó de arroz riscado, o rímel formado poças negras nas profundas meias-luas embaixo de seus olhos. Mas os lábios perfeitos. Digo isso e ela me responde:
_Sim, está perfeitos!
Conserto os estragos antes de chamar as outras para admirá-la. Todas gritam e dizem que também querem lábios vermelhos. Maquio uma de cada vez até ficarmos todas sentadas em cima e em volta da cama, rindo, passando o espelho uma pra outra, compartilhando luz, contando histórias, sobre amores secretos, saltos altos e roupas escolhidas desde um dia antes. As memórias dão lugar a uma espécie de competição, mas uma competição saudável. Florí chama isso de dizer verdades.
_O sarcasmo é um punhal afiado pelo medo.
_A doçura em excesso está fadada a terminar em desespero. O salgado realça o doce.
Chegou a vez de Florí:
_Ás vezes, em certos dias e em algumas noites, as horas pareciam não passar. Eu sempre estava procurando coisas a fazer para preencher o tempo antes do almoço ou para me manter quieta antes do amanhecer. Agora, tudo que eu quero é tempo. A vida é muito curta e rápida. Mais do que querer  reduzir seu ritmo, eu gostaria de compreender a velocidade. Nós devíamos estar dançando. Uma dança de revolta contra a dor e a morte, uma dança obstinada, arrogante, sedutora que ultrapassa limites, rasga máscaras, que agita os punhos e requebra as cadeiras. Uma dança cigana. Árabe e africana. Todas dançamos e todos nossos apetites foram atiçados naquela dança. Fomos para cozinha. Lavo as mãos e as seco no avental que Florí amarrou na minha cintura. Acho que é essa conexão que eu preciso e que desejo mais do que tudo na vida. Por mais humilde que seja, aquele é o meu legado. Sou cozinheira e padeira de sonhos. Meu ofício é muito antigo e descende dos produtores de pães, dos guardiões do fogo, dos distribuidores de dádivas.
''O tempo é um patife, Chou'' , me dizia com o olhar triste, o senhor Barlozzo. E claro, ele tem razão. Lá vai o tempo, correndo desabalado, virando-se para trás para olhar para  nós, zombando enquanto tentamos desajeitadamente preservá-lo num frasco, colocá-lo pra sempre embaixo da cama, enfiá-lo numa caixa de cetim vermelho, amarrá-lo como pérolas. Pérolas suficiente para fazer uma vida.



Trecho retirado do último capítulo do Livro: Mil Dias em Toscana, de Marlena de Blasi. Uma história verídica de amizade, do amor que vem da culinária e da vida no campo.

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