domingo, setembro 06, 2009

Sobre duas ex-canções

Por Marco Brasil

Houve um tempo em minha vida em que eu bem poderia cantar a canção dos Titãs:

o acaso vai me proteger
quando eu andar distraído

Mesmo depois de haver me convertido de fato à fé cristã, seria só trocar "acaso" por "meu Deus", mas eu poderia continuar andando distraído por aí. Sei lá, talvez fosse o temperamento, personalidade, mas eu era assim, um tanto inconsequente. Não tinha medo de muita coisa, sentia que algo maior me protegeria, e, se não protegesse... bem, eu não pensava muito nisso. E, por não fazê-lo, saltava de pedras sem me certificar muito bem do que havia embaixo, andava de madrugada pelas ruas do Capão Redondo e coisas assim. Além desses perigos físicos que corria, tinha absolutamente certeza de que seria feliz, dizia a quem me perguntasse que a felicidade era algo que vinha de dentro pra fora e deveria ser independente de qualquer situação exterior, exatamente porque não tinha muito medo.

Nesse tempo havia também uma outra peculiaridade. Tive uma ou outra paixão mais intensa, mas não havia chegado a amar alguém. Passei até uns bons anos sem namorar. Eu citava, meio jocosamente, para quem vinha conversar comigo sobre o fato, o verso de Cantares: "não desperteis o meu amor até que ele o queira". Eu afetava uma despreocupação com o fato que não era lá um primor de honestidade. No fundo eu temia que meu amor fosse do tipo que não acorda jamais, temia que pudesse ter alguma incapacidade congênita de amar. Colocava meu vinil dos Smiths pra tocar e enquanto eles cantavam

I know I'm unloveable
you don't have to tell me

eu cá com os meus botões pensava que aquela podia ser a música da minha vida.

Mas aí tudo mudou. O amor apareceu. Entrou por uma porta insuspeitada, chegou decidido e cravou a sua bandeira no solo ainda sem dono do meu coração. Não havia mal congênito nenhum, a felicidade que eu tinha muita certeza que teria não haveria de ser de um tipo mais raro ou exótico, não, poderia ser do tipo ordinário, o tipo que envolve, entre outras coisas, uma relação de um homem com uma mulher.

Eu não notei imediatamente, contudo, um efeito colateral dessa revolução. Comecei a perder o apetite por pular de pedras e coisas afins, mas só fui notar de fato que algo mais havia mudado quando vieram os filhos. Eles me fizeram descobrir que as coisas têm pontas, e que a altura de uma cama ou um sofá pode ser um abismo temivel. E hoje eu sinto meu estômago revirar ao ouvir falar dos perigos deste mundo. Eu hoje sei que sou capaz de sentir medo.

Amor e medo, descobri, andam de mãos dadas porque quando você ama de repente o seu bem estar, sua felicidade dependem do bem estar de uma outra pessoa, e isso é algo completamente alheio a você, é algo que você não pode controlar. Você pode até colocar protetores de borracha nas pontas e tampar as tomadas e checar as amizades, os horários, os entretenimentos e tudo, mas seu poder de controle será sempre limitado. Especialmente porque você sabe que essa outra pessoa vai poder fazer escolhas e ela as fará, um dia ela vai escolher.

Não é com a mínima ponta de nostalgia que lembro do tempo em que eu andava distraído e me sentia incapaz de amar. A felicidade ordinária me cai muito bem. Sou cheio de gratidão a Deus por ver que Ele, com paciência e amor me conduziu a ela e prefiro mil vezes as novas canções que Ele me deu àquelas outras. Mesmo com o medo ao qual fui tardiamente apresentado.

E por saber que amor envolve medo e por me sentir muito, gigantescamente amado, não posso deixar de sentir um pouco de pena de meu Deus. Imagine o tamanho do medo dEle. Afinal de contas, neste exato instante há mais de 6 bilhões de objetos desse amor rasgado fazendo suas escolhas.

Qual é a sua?

Marco Aurelio Brasil, 04/09/09

Nenhum comentário: