sexta-feira, janeiro 16, 2009

Crônica do Amor Inverso

 

O amor tem dessas coisas, pode ser maravilhoso e tudo o que dizem por aí, mas também gosta de brincar com a gente "Ela tinha um jeito engraçado, principalmente quando andava. Ele sabia que todos a adoravam pelo seu jeito simples, espontâneo e simpático. Falava o que dava na telha, e caia na gargalhada". Ele ficava olhando, nem conseguia rir, de tão fascinado por aquela mistura de molecagem e doçura que ela tinha como ninguém. Brincava com a vida, era amiga de todos, conversava sobre tudo, conhecia tudo.

Ele amava os momentos em que a encontrava por acaso, eles conversavam sobre coisas diferentes, longe de outras pessoas. Ela o fazia se sentir livre, dava a ele uma segurança enorme para falar o que pensava, ser verdadeiro. Com ela, ele não tinha vergonha de ser contraditório, de ser revolucionário e até bobo às vezes. Contava piadas, cantava músicas, pensava bobagem. Só não falavam de amor.

Foi assim durante quase todos os anos de faculdade. Ele achava lindo tudo o que ela falava, ou escrevia. As perguntas dela nunca eram idiotas, e as respostas que ela dava então... o faziam delirar. Ele aprendeu com ela, muito mais do que a universidade poderia lhe ensinar sobre a vida.

Aprendeu a ser sincero, a falar a verdade, aprendeu a se vestir de maneira confortável, aprendeu a opinar, e encarar os problemas e a dar risada... gargalhar mesmo, de verdade, como ela fazia. Aprendeu também, ou melhor, descobriu de maneira surpreendente, que escrevia. Fazia textos maravilhosos, sobre qualquer assunto, tinha informações sobre tudo, era divino. Mas ele só conseguia fazê-lo se estivesse imaginando que era para que ela lesse. Aquela história de Musa inspiradora, sabe? Então... era ela e para ela.

Ele a queria de um jeito conhecido como poético, não pensava nela de calcinha, nem fazendo a dança dos véus. Imagina com ela, horas e horas de conversa sobre música, cinema e livros. O seu sonho erótico ao lado dela, não passava dos dois sem sapatos, de meias de algodão e moletom, deitados na cama lendo um para o outro, trechos de contos e poemas de que mais gostavam, discutindo literatura, cultura, arte.

Os amigos davam risada, tentavam explicar a ele que as coisas tinham que ser diferente, que ele precisava falar  para ela o que sentia e partir "pro ataque". Mas ele teimava, dizia que um dia ela iria descobrir, e preferia esperar. Na verdade, tinha muito de medo de perdê-la.

Os amigos em comum viviam tentando uni-los definitivamente, pois era claro para qualquer um a química que explodia entre os dois, a sincronia com que conversavam e se relacionavam.

Ela, em casa, comentava com as amigas que passara a sentir por um amigo, algo que lhe fazia muito bem. Repetia que estava louca por um rapaz meio "nerd", que escrevia super bem, mas que só a via como amiga. Falava, virando os olhos e olhando para as estrelas, sobre os beijos que imaginava na boca dele, e sobre os contos eróticos que poderia ajudá-lo a escrever.

Dizia que ao lado dele sentia-se inteira, sentia-se útil, viva e em paz, tudo isso porque ele dava atenção a cada bobagem que ela falava e ainda por cima, ria. As amigas tiravam sarro, não acreditavam que ela, sempre a mais esperta, autoconfiante e espontânea podia sentir-se tomada por uma paixão platônica... e por um cara tão diferente!

Ela sabia que ele era mesmo diferente, e isso a deixava encantada. Ficava deslumbrada pelo jeito como ele mexia no cabelo, pelo jeito como pegava a caneta e a risada de canto que soltava quando ela extrapolava em alguma besteira. Mas não conseguia falar para ele o que sentia, o que a tomava por dentro e lhe tirava o sono.

Passaram-se os anos, na formatura, ele já um pouco bêbado, tentou falar a ela do amor que sentia. Mas antes que ele pronunciasse uma palavra, ela beijou-lhe a boca e disse que só queria dele aquele beijo, nada mais.

Disse também que não gostaria que ele se importasse, pois não queria jamais perder sua amizade. Ele, pasmado, calou.

Nunca mais se viram. Ela, hoje, dona de casa com quatro filhos, não consegue mais ser a mesma. Não consegue mais gargalhar, nem andar de jeito esquisito. Não fala bobagem e não se sente livre ao lado de mais ninguém. Agora, só perde o sono pelos filhos.

Ele, solteiro convicto e poeta, passará o resto dos anos escrevendo para sua Musa, mesmo sem saber onde, e nem como ela está. Seus poemas só falam das dores do amor, da saudade, e das angústias de não ter amado mais ninguém. Quem os conhece, entende que até hoje, ele se pergunta o motivo de ela o ter "rejeitado".

O amor tem dessas coisas. Essas brincadeiras que só entendemos  quando estamos olhando do lado de fora.

 
 

 

Nenhum comentário: